MELANCOLIA

Melancolia.
Essa foi a primeira palavra que surgiu em minha mente, e ecoou constantemente durante todo o percurso da exposição. Junto a ela, a sensação cada vez mais forte de estar invadindo um local proibido, que, embora abandonado, há anos parece ter-se conservado da mesma maneira, como uma caixa de relíquias pessoais que vão sendo desgastadas com o tempo, mas que se mantêm. Permanecem ali, imóveis, intocáveis, austeras, como testemunhas de uma vida. A vida de uma mulher: seu vestido, o vestido de suas filhas, seu cuidado com os detalhes da decoração da casa, os lençóis, as cortinas, pequenas caixas para guardar objetos queridos, fotografias, tule, espelhos – muitos espelhos, o cuidado ao pôr a mesa, com os pratos bem dispostos em uma montagem quase ritual. Todos pequenos indícios de que um dia a vida humana esteve presente, com o vigor da juventude. Como lembra a própria artista, “em todos os detalhes do território-casa há uma surpreendente avalanche de almas”, e essas almas parecem nos envolver intensamente, dividindo com o visitante as experiências e a saudade.

De fato, é impossível descrever as sensações que se tem ao ingressar no mundo criado por Dione. Ele ressoa em cada espectador de uma forma, pela subjetividade e profundidade com a qual a artista simboliza a passagem do tempo. A presença dos objetos – em oposição à ausência de seus donos – corroídos pelos dias, tomados pela poeira e pela erva sugerem fortemente a existência de um passado que não se quer esquecer. Da mesma forma, os elementos conotam um espírito feminino, no qual a sensibilidade, a delicadeza, o romantismo e o subjetivo imperam, podendo ser percebidos em diversos ambientes da mostra, desde os vestidos até a caixinha de lembranças. O tecido branco, leve e fluido, que divide uma sala em pequenos nichos (quartos) também se relaciona com o cuidado delicado de uma moça, e pode denotar a leveza de uma vida sem mistérios assim como a dor do recolhimento solitário das salas de hospital. Dentro desses nichos, uma cadeira sem assento, suporte para ganchos pendurados, um cabide que eleva um pequeno vestido de batizado com o nome de duas crianças amorosamente bordados, outro com um provável vestido de noivado, uma mesa que armazena talheres. Tudo envolto pelo forte odor da naftalina que protege dos insetos. Em outra sala (se podemos chamar assim), livros muito antigos, garrafas envelhecidas, uma colher repousando sobre um tecido dobrado e um ovo, sobre suporte semelhante. Estantes vazias, espelhos que já não refletem mais, a insistente presença de uma camisa pendurada em um cabide. Todos os recantos dessa obra/casa emanam a recordação daquilo que se foi.

Muito bem montada, o grande número de objetos da exposição não se perdeu dentro do espaço amplo da galeria. Ao contrário, parece ter se adequado perfeitamente ao ambiente espaçoso e com um elevado pé-direito: tem-se uma verdadeira intimidade com os elementos. Em momento algum conseguimos fugir da lembrança de um passado, como se ficássemos presos dentro do mundo de ausências proposto por Dione, que revelou ter realizado quase uma prece, ao fechar-se sozinha naquele espaço para elaborar sua criação.

Da montagem às sensações finais transmitidas ao espectador, a obra "Fragmentos Primordiais" carrega intensamente os termos “memória” e “feminino”, assim relacionando Dione com duas artistas contemporâneas suas: a francesa Sophie Calle e a brasileira Beth Moyses. Esta atualmente expõe, na Galeria de Arte do Sesi, em São Paulo, uma pequena obra na qual uma trança repousa sobre uma cama de madeira, coberta pelo tule esbranquiçado bordado com rosas. Esse conjunto, suspenso no ar por fios de nylon, traz à tona o amadurecimento, “o fim da juventude, a morte da inocência”.[1] Aquela, por sua vez, utiliza histórias de vida para retratar a passagem do tempo, o esquecimento e o amor perdido. Em recente exposição retrospectiva[2] , Sophie apresentou uma obra inédita na qual o sofrimento de um rompimento amoroso vai sendo obscurecido pelo dia-a-dia, na medida em que o tempo avança. Cada uma delas, a seu modo, remete à melancolia, à dolorosa consciência de que a vida se esvai e à negação do envelhecimento, sob o ponto de vista feminino.

No caso de Dione, especialmente, apesar do teor melancólico e denso, é possível vislumbrar a esperança da renovação. Ao perder a juventude, adquire-se a sabedoria, retratada pela artista nas ervas que invadem o espaço um dia dominado pelo homem. A presença humana vai sendo apagada e substituída pela natureza, que volta a seu lugar: é a vida que se renova após a morte.


 
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Débora Bertol - outubro/2004


Notas:

[1] Kátia Canton, catálogo da mostra Natureza Morta/ Still Life. São Paulo: MAC-USP/SESI, 2004, p.47

[2] M’as-tu vue. Paris, Centre Pompidou, 19 de novembro de 2003 a15 de março de 2004.