Dos perceptos, dos afectos, do mito, das sensações, dos objetos...


Maria Cristina Ferrony

 

Dione Veiga Vieira é artista plástica com formação no curso de Letras pela PUCRS. Possui especialização em Artes Plásticas: Suportes Científicos e Práxis. De 1989 a 1992 viveu em Colônia na Alemanha onde manteve Atelier de Arte na associação "STADTKUNST E.V. Köln". Vive atualmente em Porto Alegre onde trabalha com instalações, objetos, esculturas, fotografia, desenho e também literatura. Atualmente também se dedica à curadoria de mostras de arte e à produção de textos de arte. Já realizou diversas exposições individuais destacando-se "A Liquefação e a Decantação” de 2008, na Galeria Gestual em Porto Alegre, "Fragmentos Primordiais" de 2004, na Sala Especial do MAC/RS, "A Calcinação, a Unção e a Floração" de 2002 no MALG em Pelotas e "Primal" de 2001 na Pinacoteca da FEEVALE, Novo Hamburgo. A obra “O Nascimento de Afrodite - Sobre a Origem e Criação foi apresentada na mostra “Casa Fechada” na Casa de Cultura Mário Quintana, com obras de mais seis artistas que trabalham a temática do corpo como metáfora da casa e vice-versa.


O Nascimento de Afrodite - Sobre a Origem e Criação” trata-se de uma escultura-instalação, composta por um artefato oval de cerâmica, um tecido de algodão tingido com argila e dobrado, uma banqueta de madeira, um pêndulo de chumbo, uma esponja vegetal embebida em argila, uma tigela em cerâmica com água e argila e uma Fotografia. A imagem da fotografia é o resultado de uma sobreposição de imagens digitais. Essa obra não se vincula particularmente a uma corrente artística, mas, segundo a definição de alguns teóricos sobre a poética da artista, estabelece uma correspondência com a arte conceitual e também com a arte matérica, ou pintura matérica[1], ambos movimentos importantes da arte contemporânea que se desenvolveram marcadamente entre as décadas de 60 e 70 e que hoje repercutem na obra de alguns artistas trazendo seu importante legado incorporado aos atravessamentos próprios da atualidade. Dione parte da utilização de objetos praticamente “in natura”, objetos perfeitamente reconhecíveis na sua aparição, o oposto da imagem abstrata a não ser pela fotografia em que as imagens digitais sobrepostas confundem até um certo ponto a legibilidade do objeto.

Essa obra já não mais existe. Apenas a foto que compunha a obra restou como o último vestígio material do conjunto. A natureza prosaica dos materiais utilizados na sua composição determina a efemeridade como parte de seu processo e dá visibilidade aos fenômenos e alterações químicas da matéria, pois que é frágil. “...a duração do material é muito relativa, a sensação é de uma outra ordem, e possui uma existência em si enquanto o material dura” (DELEUZE, 2007, p. 248). Os registros fotográficos, realizados quando a obra esteve exposta, reforçam a idéia da assepsia cerimoniosa dessa composição, um bloco de sensações, um composto de perceptos e afectos, guardado em suspenso.

"O que se conserva, de direito, não é o material, que constitui somente a condição de fato; mas, enquanto é preenchida esta condição (enquanto a tela, a cor ou a pedra não virem pó), o que se conserva em si é o percepto ou o afecto. Mesmo se o material só durasse alguns segundos, daria à sensação o poder de existir e de se conservar em si, na eternidade que coexiste com esta curta duração" (DELEUZE, 2007, p. 216).

Um assalto ao nosso bem arranjado senso estético, “O Nascimento de Afrodite - Sobre a Origem e Criação” é como que uma educação do olhar que se obriga a lhe perceber como algo muito belo. Essa composição visual é de uma peculiar harmonia em que nada parece exceder nem perturbar o equilíbrio do conjunto. À sensação de fragilidade na apreensão do pequeno objeto (o ovo) que se acomoda na superfície aparentemente instável do tecido, contrasta uma sensação de acatamento e justa medida por seu imperioso e solene estado a nos capturar em veneração como que diante de um objeto sagrado, nobre e poderoso. Quanto tecido em barro será necessário para suportar o peso da criação? Quanto nos revela em “possíveis” esse objeto hermético – o ovo? Ao escorregar nosso olhar pelas carnes que o sustentam se confirmam as dores e os suplícios da inexorabilidade do nascimento, a violência dos órgãos na conformação do novo corpo. Absoluto, perfeito, o ovo se impõe como a obra de arte mesma, nunca um fim, mas algo a tornar-se outro. Também um “Corpo de Passagem”? Um devir. Segundo Deleuze, o ovo é pura sensação, é corpo sem órgãos[2], “campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo)” (DELEUZE, 2004, p. 15). É o grau zero, um nada que é tudo, onde tudo pode vir a ser.

Essa obra, intensamente fecunda na produção de sentidos, traz no título sua alusão ao mito, mais propriamente ao mito da beleza. Na exaltação do mito, o momento mágico da sua criação, o paroxismo do belo. A qualidade peculiarmente estética de sua composição, portanto, é asseverada pelo mito. Afrodite, na mitologia grega, a deusa do amor, da beleza corporal e do sexo. O momento sublime de seu nascimento é uma passagem obscura da mitologia em que diferentes versões o descrevem[3], e ficamos a sondar, sobre essa versão apresentada por Veiga Vieira. Parecendo recusar peremptoriamente uma deificação clássica, o mito se revela apesar disso e ostensivamente, na escolha por materiais carregados de eflúvios indicativos. A começar pelo “ovo” e sua associação primeira à origem, ao nascimento, à própria vida manifesta na máxima perfeição da forma; e o que o acomoda, as peles do elemento terroso que na cultura judaico-cristã também remete à criação, o homem moldado em barro por Deus. Se à obra colarmos nosso entendimento matérico do que seja o nascimento, a carne, a secção e o sangue, a natureza animal desse acontecimento irrompe no protuberante tecido pintado de argila. A banqueta revela sua condição prestimosa, como a superfície de amparo que sustenta a carne, o altar que a recebe; o pêndulo demarca o centro, o vetor, e promove a unção da esponja vegetal com o continente do receptáculo configurado na tigela, a água argilosa contida na concha de Afrodite. De onde somos levados, através desse recuo de entidades, a vislumbrar aí o momento da fecundação? No ósculo em suspenso, a união entre as carnes.

Até aqui, nada a gerar estranhamento, nada a forçar interpretações numa escala mais ampla de especulação. Nesse movimento apenas descrevo o que se dá a ver e o digo à minha maneira, ou à maneira de que a mim se acerca. Mas há um entendimento inato das coisas, dos objetos que valem por si mesmos como puros perceptos. Não há como nos desvincularmos dos sentimentos ulteriores de que somos constituídos, que não estão nas lembranças, numa nostalgia fixada em um lugar ou tempo definidos, mas que submergem em espasmos na presença de determinados indicadores pelos quais somos invadidos. Como em Proust[4], os objetos utilizados nessa obra não nos dizem nada que evada de sua condição enquanto objetos, mas são continentes férteis desses sentimentos inexplicáveis. Objetos como seres de sensação, entes vivos inorgânicos compostos de carne. A composição de um corpo-casa.
"Eis tudo que é preciso para fazer arte: uma casa, posturas, cores e cantos – sob a condição de que tudo isso se abra e se lance sobre um vetor louco, como uma vassoura de bruxa, uma linha de universo ou de desterritorialização" (DELEUZE, 2007, p.238).

O erotismo na obra de Veiga Vieira é sublimado, mas é afecto. Não se lança à graça de uma interpretação imediata, mas é ser de sensação, contido no conjunto da obra em cada elemento que a compõe. Aqui a “idéia” de erotismo não está contida na matéria corpórea da obra, mas esta a sustenta na medida que os seus componentes a ela se reportam, por isso talvez a suposição, por parte de alguns críticos, de que seja uma obra de arte conceitual.

Nessa análise da obra de Dione, propositalmente não apontei até agora, como na análise anterior, elementos que possam ser compreendidos como prescritivos numa possível construção de saberes, intencionando, com esse procedimento, oportunizar ao leitor uma experiência errante em que lhe seja permitido criar afectos a partir de seus próprios conhecimentos que haja coletado sobre a conceituação de arte. Assim, e apenas atentando para o entendimento da obra como um potencial disparador de sentidos, por suas atribuições plásticas, espera-se que diante de uma mínima apresentação de uma obra com características tão impessoais e inapreensíveis como essa obra de Veiga Vieira, uma movimentação sensível profícua seja realizável.

Um encontro, acontecimento. Os elementos mais reconhecíveis da arte contemporânea, o humor, a ironia, o inacabado, o atraso, o insólito e o erótico, portanto, não se apresentam nessa obra a não ser como entes ocultos, mas o “invisível”, que também se traduz como “pensamento”, outro forte elemento partícipe a compor nessa esfera, se apresenta como a assegurar o estatuto de “O Nascimento de Afrodite - Sobre a Origem e Criação” como uma incontestável obra de arte contemporânea.

Afora os elementos que não se dão a ver claramente, brotam algumas questões específicas da arte contemporânea no encontro com essa obra, como o rompimento manifesto em relação à “pureza dos meios”, um preceito característico da arte moderna. Não é pintura, no entanto há pintura; não é escultura, no entanto se expande no tridimensional; há fotografia, mas esta faz parte do conjunto, e sem ele passa a significar outra coisa. É a transposição, portanto, dos limites da ação estética, quando o campo desta ação se alarga na adoção de outros meios, outros espaços, outros materiais, outras possibilidades, enfim.

A impessoalidade dessa obra, também, a jogar com a questão da identidade das coisas, que não são mais o que são. Não à maneira da arte Pop que buscava com a estereotipação das imagens pelos mass media expor o caráter frágil do objeto e do sujeito, mas talvez mais à maneira de Duchamp. O ovo, o barro, o tecido, o banco, a esponja, a tigela, a fotografia, são outras coisas nessa obra e é claro que ainda os percebemos como os objetos que são, pois que não foram transgredidos na sua forma. Mas são outras coisas... da ordem das sensações, entrelaçados na composição de uma nova força.

Os materiais foram reunidos e combinados de maneira que pudessem comunicar suas propriedades imanentes. Falam de si ao espectador, suas memórias retidas, tensões, mistérios e vulnerabilidade pertinentes a um corpo, mas é no fora que encontram-se revelados os seus humores, a sua essência, enquanto sensações.

... "Quando uma sensação se produz, ela não é situável no mapa de sentidos de que dispomos e, por isso, nos estranha. Para nos livrarmos do mal-estar causado por esse estranhamento nos vemos forçados a “decifrar” a sensação desconhecida, o que faz dela um signo. Ora a decifração que tal signo exige não tem nada a ver com “explicar” ou “interpretar”, mas com “inventar” um sentido que o torne visível e o integre ao mapa da existência vigente, operando nele uma transmutação. Podemos dizer que o trabalho do artista (a obra de arte) consiste exatamente nessa decifração das sensações. É talvez nesse sentido que se pode entender o que quis dizer Cézanne com sua idéia de que é a sensação o que ele pinta" (ROLNIK, 2007, p.3).


______________________________________________________________________________


NOTAS:

[1] Arte matérica ou pintura matérica surge na Europa no período pós-guerra. Arte corpórea com a tônica nas qualidades do material. Tem influência da poesia e da alquimia, donde os processos mentais e os processos do material são o axioma dessa tendência que busca explorar “o que nos diz o material?” De características abstratas mistura materiais não pictóricos considerados pobres como, argila, feltro, látex, estopa. Alguns artistas matéricos: Yves Klein, Anselm Kiefer, Jannis Kounellis, Joseph Beuys.

[2] CsO – Termo nomeado por Antonin Artaud em seus escritos e adotado por Deleuze & Guattari para dizer do estado de um corpo “antes” da representação orgânica, mas é um corpo pleno de intensidades, “limiares ou níveis” (DELEUZE, 2007, p. 51). “O CsO é o ovo. Mas o ovo não é regressivo: ao contrário, ele é contemporâneo por excelência, carrega-se sempre consigo, como seu próprio meio de experimentação, seu meio associado. O ovo é o meio de intensidade pura, o espatium e não a extensio, a intensidade Zero como princípio de produção” (DELEUZE, 2004, p. 27).

[3] A deusa Afrodite, da mitologia grega nasceu na ilha de Chipre. Conforme a versão de Homero e Eurípedes, era filha de Zeus e Dione, uma oceânide e a deusa das Ninfas. Na versão de Hesíodo, a mais antiga, Afrodite nasce de uma espuma formada em torno dos órgãos genitais de Urano que haviam sido lançados ao mar após a mutilação realizada por seu filho Cronos. As duas versões se confundem, na medida em que ambas envolvem Tálassa, a deusa primordial do mar, que após a fecundação com o sêmen de Urano teria gerado Dione numa das versões e Afrodite, na versão mais admitida.

[4] “O mesmo se dá com o nosso passado. É trabalho baldado procurar evoca-lo, todos os esforços de nossa inteligência serão inúteis. Está escondido, fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que esse objeto material nos daria), que estamos longe de suspeitar. Tal objeto depende apenas do acaso que o reencontremos antes de morrer, ou que o não encontremos jamais” (PROUST, 2002, p. 51).
_____________________________________________________________________________

Texto (2009) publicado In "Revista Internacional Estúdio 3 – Artistas Sobre Outras Obras", Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, Portugal, 2011.